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O ABC da mídia para crianças
Publicado em 02.01.2017 7:00:18

Por Clarinha Glock

Expressões como educação para a mídia, alfabetização midiática (media literacy), educomunicação ou leitura crítica dos meios remetem a uma ideia comum: crianças e adolescentes não podem ficar passivos na frente da televisão ou de qualquer outro meio de comunicação. Em todo o mundo, estão em discussão estratégias, programas e iniciativas para que aprendam a distinguir o que é informação, entretenimento, publicidade, e como identificar manipulações, exageros e falta de qualidade. E não só isso. A educação para a mídia se estende para a produção de conteúdos com participação das próprias crianças e adolescentes.

A proteção e promoção dos direitos de crianças e adolescentes nos meios de comunicação estão garantidas na Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 firmada por quase todos os países, menos Estados Unidos, Somália e Sudão do Sul. No Brasil, uma das medidas adotadas para proteger estes direitos é a classificação indicativa dos programas de televisão. Mas o que os pesquisadores e professores reunidos no Seminário Internacional Infância e Comunicação realizado em março deste ano em Brasília salientaram é que não basta apenas o Estado agir. Deve haver uma corresponsabilidade do Estado, pais, professores, sociedade civil, empresas e inclusive das crianças.

As Diretrizes para o Ensino Fundamental de Nove Anos, publicadas pelo Ministério da Educação em dezembro de 2010, apontam para a participação de meninos e meninas na formação do seu próprio currículo. “A educomunicação introduz no sistema escolar processos, programas e projetos de educação para a mídia na perspectiva de conteúdo, na perspectiva de uma visão moral, e especialmente na perspectiva política, pelo reconhecimento do direito de a criança se expressar”, explica o professor Ismar Soares, coordenador do Núcleo de Comunicação e Educação da Universidade de São Paulo e supervisor do projeto Mídias na Educação, do Ministério da Educação. Inserir a criança politicamente significa instrumentalizá- -la para assumir-se como cidadã e exigir televisão de qualidade, por exemplo.

O Mídias na Educação é um programa de educação a distância do MEC de formação continuada que ensina o uso pedagógico das diferentes tecnologias da informação e da comunicação a professores de educação básica da rede pública. Um dos seus objetivos é desenvolver estratégias de autoria e de formação do leitor crítico nas diferentes mídias. Os especialistas lembram que os meios de comunicação representam uma das mais importantes instituições de socialização e é importante que crianças e adolescentes compreendam e questionem criticamente as mensagens recebidas. Isto porque dedicam cada vez mais tempo para a interação com estes meios. A socialização pela imagem da tevê é atraente, o acesso é gratuito, e sem os pais ou responsáveis por perto há uma exposição a conteúdos que podem levar a comportamentos de risco, agressividade e incentivo ao consumo.

A era digital ampliou esse universo. “Não basta mais as escolas ensinarem apenas a ler e a escrever”, alerta Divina Frau-Meigs, assessora do Conselho da Europa e da Unesco, professora de Estudos Americanos e Sociologia da Mídia na Universidade da Sorbonne Nouvelle, na França. “É necessário alfabetizar para a informação como código, como o saber computar; para a informação como notícia, como documento ou como um dado que qualquer um pode carregar ou descarregar on-line nas plataformas atuais. Se uma pessoa não pode pôr seus documentos on-line, ela não existe, é como se não se expressasse”.

Uma figura crucial na escola é o bibliotecário, aponta Divina. Vistos apenas como auxiliares que ajudam a colocar os livros em ordem, os bibliotecários foram os primeiros a serem informatizados. “O que estamos fazendo na França é capacitá-los para que atuem como formadores e educadores. O título agora é professor-bibliotecário. Eles podem mostrar às crianças onde está a informação nos códigos (de computador), nos documentos e na atualidade, algo que em geral os demais professores não fazem ou não querem fazer”.

Em um dos programas Buddyz on the Move (que pode ser traduzido como Amigos em Movimento), veiculado pela televisão na África do Sul, as crianças conseguiram mobilizar a direção da escola para auxiliar um colega que não podia frequentar as aulas por ter de cuidar da mãe doente. Através de entrevistas feitas pelas próprias crianças, os professores, os pais e o público em geral se sensibilizaram com o drama do garoto, que finalmente, com a ajuda da assistente social, voltou aos estudos. “Por que é importante estudar?”, questionou uma menina no vídeo. “Para ter futuro”, garantiu. Em outro episódio da série, as crianças marcharam pelas ruas para exigir escolas livres de bebidas alcoólicas, droga mais consumida entre os jovens naquele país.

O Buddyz on the Move integra o projeto da Soul City − Instituto para Saúde e Comunicação para o Desenvolvimento da África do Sul. Innocent Nkata, executivo de mobilização social da entidade, explica que as campanhas para difundir conhecimento sobre HIV atingiram resultados surpreendentes quando o assunto foi inserido nas discussões dos clubes Soul Bodies que funcionam nos colégios. As crianças contribuem com uma revista e em programas do seriado de televisão em que são abordados temas como abuso sexual, uso de drogas e gravidez na adolescência.

Em todos os cantos do mundo há produção de mídias feitas por crianças e adolescentes. Estas experiências permitem se aproximarem de questões relevantes e expressarem sua opinião sobre o que os afeta. Desta forma, há um estímulo à participação e um reforço da autoestima, dizem os especialistas. No Brasil, um exemplo é a Revista Viração e as atividades da Rede Nacional de Adolescentes e Jovens Educadores. “Muitos jovens reclamam que não são ouvidos. Temos que saber escutar. Os professores não os veem e um fica com medo do outro. Temos que reinventar uma forma de respeito e integrar mais nas escolas a cultura popular. Isso não se faz com tecnologia, mas com a mente”, defende a professora Divina Frau-Meigs.

Suécia é referência

Desde 1911 a Suécia de­ niu parâmetros de exibição de conteúdos cinematográ­ cos direcionados a crianças e adolescentes nos meios de comunicação. Pelo menos nove agências governamentais dirigem a política nacional que inclui regulamentação da mídia, pesquisas sobre o tema e a televisão pública com agenda dedicada à infância e adolescência. A existência de organismos reguladores independentes para supervisionar a aplicação das leis estimula as boas práticas e corrige os erros. A legislação de rádio e televisão prevê a classi­ cação indicativa de horários para programas com conteúdos violentos ou pornográ­ cos e traz restrições à publicidade dirigida a crianças e adolescentes. Por lei é obrigatório exibir porcentagens mínimas de conteúdos europeus, suecos e produção independente, bem como conteúdos especialmente produzidos para os públicos infantil e juvenil, com ênfase na diversidade e inclusão de minorias étnicas e linguísticas.

Como em outros países, o desa­ o agora é transpor a regulação já existente para a internet e os canais via satélite. Na França, um sistema de classi­ cação de sites na internet via provedores de serviços já está em funcionamento. “Conseguimos que colocassem na parte debaixo da tela, onde ­ cam todas as coisas importantes para o consumidor, a informação de classi­ cação. O aviso indica o que se pode descarregar para uma determinada faixa etária e, se houver conteúdos violentos, serão bloqueados. Pode-se bloquear por tempo de uso, por idade, ou por conteúdos”, explica Divina Frau-Meigs. Independentemente deste mecanismo, as novas diretrizes da Comunidade Europeia para os Serviços de Comunicação Audiovisual estabelecem que todos os países devem investir na educação para a mídia. Foi uma conquista para contrabalançar a maior inserção de publicidade nos meios de comunicação.

Brasil corre risco de retrocesso

Um estudo sobre a proteção dos direitos de crianças e adolescentes em 14 países latino-americanos, elaborado pela Andi e Rede Andi América Latina com apoio da organização Save the Children, mostra que nem todos têm dispositivos reguladores dos meios de comunicação. Segundo o levantamento, a Bolívia é o país mais precário neste sentido; o Chile tem um sistema mais completo, já Brasil e Costa Rica conseguiram avançar com a classificação indicativa por idades de audiovisuais.

A classificação indicativa foi adotada em 1990 no Brasil e revisada em 2005 com ampla participação da população. Símbolos coloridos antes dos programas indicam o conteúdo quanto à adequação de horário, local e faixa etária, alertando pais ou responsáveis. Mas este mecanismo de proteção está ameaçado pela Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 2404 proposta pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) que aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal. A ADI questiona a legalidade do Artigo 254 do Estatuto da Criança e do Adolescente que prevê multa às emissoras por descumprimento da vinculação horária estabelecida pela classificação indicativa. O partido alega que a medida viola o direito da liberdade de expressão e livre manifestação do pensamento. “O Estado não determina o corte de cenas ou capítulos, não há censura”, contestou Paulo Abrão, secretário Nacional de Justiça do Ministério da Justiça, durante o Seminário Infância e Comunicação. São as emissoras que estipulam os programas para cada horário. Cabe ao órgão governamental apenas fiscalizar para proteger os direitos das crianças e adolescentes previstos na Constituição Federal e nos acordos internacionais firmados pelo Brasil.

Jornal Extra Classe (SINPRO-RS)